O Nordeste do Brasil sempre foi terra fértil para a Igreja, talvez em razão da origem simples do sertanejo, que se caracteriza por sua religiosidade singela tendente ao messianismo fanático, diz Darcy Ribeiro (RIBEIRO, 1995). Padre Cícero Romão Batista começa sua trajetória nesse solo árido e seco – retrato do povo sofrido, cujas marcas do tempo, em seus rostos, se assemelham a terra magra e rachada do sertão – um povo humilde e crente no sagrado como caminho de superação da dor, da miséria e de tantas outras injustiças sociais.
Convidado para celebrar uma missa na pequena capela de Nossa Senhora, em 1872, aquele novo padre afirmou que em sonho recebeu a revelação, com a visão de:
Treze homens, em vestes bíblicas, entrarem na escola (onde ele estava provisoriamente alojado) e sentarem-se em volta da mesa do professor, numa disposição que lembrava a Última Ceia, de Leonardo da Vinci. O padre sonhou, então, que acordava e levantava-se para espiar os visitantes sagrados, sem que estes o vissem. Nesse momento, os doze apóstolos viraram-se para olhar o Mestre (…) No momento em que o Cristo imaginário levantou-se para dirigir a palavra a seus apóstolos, um bando de camponeses miseráveis entrou, de repente, na escola. Carregando seus parcos pertences em pequenas trouxas sobre ombros, estavam os homens e mulheres vestidos de farrapos, e as crianças nem isso tinham. Davam a impressão de virem de muito longe, de todos os recantos dos sertões nordestinos. Cristo, então, virou-se para eles e falou, lamentando a ruindade do mundo e as inúmeras ofensas da humanidade ao Sacratíssimo Coração. Prometeu fazer um último esforço para salvar o mundo, mas caso os homens não se arrependessem depressa, Ele poria fim ao mundo que Ele mesmo havia criado. Naquele momento, Ele apontou para os pobres e voltando-se, inesperadamente, para o jovem sacerdote estarrecido, ordenou: E você, Padre Cícero, tome conta dele
(CAVA, 2014. p.56).
Aos poucos o religioso vai mergulhando cada vez mais no misticismo e no sagrado, em 1889, a beata Maria de Araújo, com 29 anos, ao comungar a missa celebrada por Cícero, em 6 de março daquele ano, sentiu a boca encher de sangue, e logo corria a notícia do milagre em Juazeiro, trazendo para o povoado romaria de fieis de todos os cantos do sertão nordestino, e que ao padre pedia a bênção e conhecer a beata. Empolgado com a presença de Deus naquele pobre e esquecido lugar, Padre Cícero proclamava aos visitantes: um milagre, meus filhos! Um milagre, meus amiguinhos! É o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Afastado das obrigações religiosas pela Igreja, em decorrência da afirmação e divulgação do suposto milagre, o processo disciplinar que puniu Padre Cícero termina por leva-lo a caminhar pela política, incentivado pelo médico Floro Bartolomeu, que vindo da Bahia, em 1908, se instala no lugarejo e passa a ter influência sob o religioso.
Em 1926 a Coluna Prestes percorria o sertão nordestino, e na tentativa de ganhar a simpatia do governo do presidente Artur Bernardes, Dr. Floro Bartolomeu, deputado federal, teve a ideia de chamar Lampião a Juazeiro para dar-lhe uma patente militar, e incentiva-lo no combate a Coluna, prometendo ainda um encontro dele com o padre Cícero. Aceito o convite, Virgulino entrou no vilarejo em 4 de março de 1926.
Em 20 de julho de 1934, aos 90 anos, morte Padre Cícero, seu caixão é posto na janta de sua casa para que todos pudessem se despedir do padrinho. A notícia da morte corria pelos telegramas e logo romeiros de todos os recantos começavam a chegar. Calcula-se que cerca de 60 mil pessoas acompanham o funeral. Aviões da Aeronáutica cruzavam o céu de Juazeiro em homenagem ao santo do nordeste, que hoje é venerado por cerca de 2,5 milhões de romeiros que acorrem todos os anos à cidade cearense.
O processo aberto na Congregação da Doutrina da Fé, em 2008, então chefiada pelo cardeal Ratzinger, depois Papa Bento XVI, foi em 2015 concluído, tendo o Papa Francisco aprovado a reabilitação, conforme carta lida assinada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé: “É sempre possível, com a distância do tempo e o evoluir das diversas circunstâncias, reavaliar e apreciar as várias dimensões que marcaram a ação do Padre Cícero como sacerdote e, deixando à margem os pontos mais controversos, por em evidência aspectos positivos de sua vida e figura, tal como é atualmente percebida pelos fiéis.”
A beata Maria de Araújo

Instrumento do milagre em Juazeiro, a beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo foi também muito perseguida pela Igreja. Mulher, negra e pobre, sofreu as injustiças sociais e eclesiásticas. Em 1894, após vários padres analisarem seu caso, ela foi condenada à reclusão. Seu nome sequer podia ser mencionado.
Sobre sua fisionomia, assim descreve o memorialista Manoel Diniz:
[…] bem mestiça, de cabelos quase carapinhos, que usava cortados baixinho, de estatura média, um pouco delgada, tinha cabeça pequena, um pouco arredondada, olhos meiões [sic] quase negros e suaves na expressão, lábios um pouco grossos, nariz pequeno, faces um pouco salientes, queixo pequeno e pescoço bem proporcionado. Vestia hábito de beata, preto, conservando a cabeça coberta, e tinha aspecto fisionômico e geral de pessoa simples, dócil e boa.
(DINIS, 2011 [1935], 42)
Texto:
AGUIAR, Múcio. Santos Populares do Nordeste, volume: Padre Cícero. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2021.
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